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ღ NO MOMENTO AS HOMENAGENS ESTÂO SUSPENSAS! Abraços fraternos!

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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Se meu cão falasse


Se meu cão falasse 

Na casa dos meus pais nunca houve cães. Em criança tive um coelho branco de olhos encarnados, mais tarde um gato preto a que dei o nome de Matateu (em homenagem a um famoso jogador do Belenenses), várias categorias de pássaros (entre as quais um periquito, um canário e dois peitos celestes) e alguns cágados. Mas cães, por qualquer razão, nunca tive nem quis ter.

O primeiro cão que me entrou em casa foi pela mão do meu filho mais velho, Francisco.
Depois de uma noite em branco com passagem obrigatória pelas discotecas da moda, telefonou-me para o emprego com uma pergunta que era simultaneamente um pedido: como reagiria eu quando regressasse à noite a casa e encontrasse um cão?

O cão era um rafeiro tigrado, de pêlo castanho e preto, com meia-dúzia de semanas, que ele comprara por cinco contos a um vagabundo na avenida da República. Parecia selvagem -– e quando me aproximei dele mostrou-me os dentes com tal ferocidade que, apesar do seu diminuto tamanho, desisti de lhe tocar.

Como ainda não podia sair à rua, ficou fechado na zona da cozinha, mais fácil de limpar. Sucede que no andar ao lado moravam umas pessoas que dormiam num quarto contíguo à nossa cozinha e começaram a queixar-se do barulho das patas do cachorro no chão de mosaico e do arrastar de objectos, pelo que tivemos de mudar o bicho para um quarto no outro extremo da casa, onde passou a dormir num sofá. Roer os braços e as almofadas do sofá tornou-se o seu principal entretenimento, pelo que passadas umas semanas já pouco restava do dito.

Os prejuízos eram, porém, compensados pelas gracinhas do animal.
À medida que os estragos em casa aumentavam, o nosso apreço pelo cachorro também crescia – pelo que em nenhum momento pensámos mandá-lo embora.
Até porque a progressiva dependência que o cão revelava em relação a nós, de braço dado com a alegria que mostrava quando nos via, eram comoventes. Como podíamos abandonar um ser inocente que confiava tão abertamente em nós?

Comecei mesmo a dizer que o cão era quem melhor me recebia quando chegava a casa. Antecipava a minha entrada levantando-se de um salto do sofá e correndo para a porta, ladrava, dava saltos e pedia festas como se tivesse visto o Salvador.
E de certa maneira tinha. Ao contrário dos homens, os cães têm seres de carne e osso a quem podem adorar como se fossem deuses: os seus donos. Para cada cão, o dono é um Deus – por quem ele está disposto a fazer todos os sacrifícios e dar a vida.

A fidelidade do cão é tão completa, tão incondicional, tão absoluta, que acaba sempre por abrir uma brecha no coração do dono, por mais empedernido que seja. É frequente, assim, ouvir uma pessoa contar as gracinhas do cão aos amigos ou aos colegas como se descrevesse as novas habilidades do filho ou do neto, criando-se por vezes situações embaraçosas.
– O meu neto comeu ontem sopa pela primeira vez. Não engoliu, foi enchendo a boca e soprou: fiquei coberta de sopa até à cintura.
– O meu cão desapareceu. Fui encontrá-lo duas horas depois debaixo de uma mesa, cheio de papelinhos ao lado: tinha comido uma caixa de bombons.
Ora, se para os proprietários de cães esta conversa é natural, para os pais ou avós de crianças é ofensiva: não se comparam pessoas a animais.

E aqui é que bate o ponto. Para quem tem cães, é muito difícil admitir que o cão é um animal. Pelo menos, um animal irracional. Irracional? Pois o cão não percebe perfeitamente certas palavras, não compreende as ordens do dono, não sabe o que deve e não deve fazer em determinadas circunstâncias, não tem sentimentos?

Um dia vi o meu cão fazer esta coisa extraordinária: deitei-lhe uma bola pela janela para a parte de trás da casa. O que seria ‘instintivo’ para ele era atirar-se pela janela atrás da bola. Mas não o fez: a janela era alta. Então, desceu as escadas, saiu pela porta, contornou o prédio, foi direito à bola, fez o caminho inverso e veio depositar-me a bola aos pés. Como falar, depois disto, em animal irracional?

É evidente que os cães raciocinam. Que os cães sentem. O que está por descobrir – porque não falam – é o modo como articulam os raciocínios e qual o nível dos seus sentimentos.
No preciso momento em que escrevo estas linhas, o Paco (assim se chama o meu cão) está deitado aos meus pés, parecendo bastar-lhe isso para ser feliz. A sua felicidade é poder estar ao pé do dono, respirando o ar que ele respira, partilhando o mesmo espaço.

Outra coisa que faz, quando me levanto de um maple, é deitar-se no sítio em que eu estava sentado – ou, quando eu saio do carro, ir para o meu lugar. No regresso já sei que o vou encontrar enroscado no banco do condutor. Mas, quando me vê, põe-se instantaneamente de pé e volta pacientemente ao seu lugar no banco de trás. Não será isto pensar, perceber as situações?

Podia ficar aqui páginas seguidas a falar das gracinhas do Paco, dos sustos que nos pregou, das palavras que conhece (e já são muitas). Mas não vou fazê-lo: falar dos cães é, no fundo, como falar dos bebés – todos os pais acham que os seus são únicos mas afinal fazem todos mais ou menos as mesmas coisas.

O meu objectivo é outro: comentar uma frase que invariavelmente se diz para sublinhar exactamente a esperteza de um cão. A frase é: «Só lhe falta falar!». Ora isto é um tremendo disparate! Uma das grandes vantagens dos cães é exactamente não falarem! O que aconteceria se os cães falassem? Quantos dislates não diriam? Quantas irritações não nos provocariam?

O fato de não falarem é mesmo uma das grandes vantagens dos cães sobre as pessoas. O saberem exprimir silenciosamente os seus sentimentos. Não nos perturbarem a paz.
E através do silêncio dos cães percebemos outra coisa: os afectos dispensam palavras. É fortíssima a ligação afectiva entre o cão e o dono. Essa ligação constrói-se, no entanto, no silêncio, através do prazer da partilha do mesmo espaço, das carícias, do entusiasmo pelos reencontros, do olhar, das manifestações de lealdade.

Quando morre um cão, uma família fica de luto – como se lhe tivesse morrido um parente. E para esse sentimento acontecer não foi preciso ser trocada uma única palavra.
Quando pensamos nos cães, as palavras parecem ter sido inventadas mais para desunir do que para aproximar, mais para semear discórdias do que para fazer concórdias, mais para odiar do que para amar.

Se me fosse dada a possibilidade de escolher, não gostaria que o meu cão falasse. Assim sei que gosto dele. E o que aconteceria se começasse a dar opiniões?

Autor: José António Saraiva
Portugal

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