.
Você pode não estar ciente disso, mas nesse exato momento várias espécies convivem com você numa relação muito íntima. Estima-se que haja por volta de 100 trilhões de microorganismos em todo o nosso corpo: estômago, pele, intestino, axilas, boca, entre outros. A convivência com outros seres é parte da vida humana, sejam as relações harmônicas ou desarmônicas.
Mais uma ligação entre humanos e outras espécies, que nem sempre é vista pelo ângulo das relações entre diferentes seres vivos, remonta há milhares de anos. Trata-se da relação entre os humanos e todos os animais domesticados, alguns visando à produção de leite e consumo de carne, por exemplo, e outros para a companhia, como os animais de estimação.
Criar animais de estimação é uma atividade muito comum entre nós, e costumamos gastar muita afeição e dinheiro com eles. Existem indícios de que a associação dos humanos com os cães, os mais populares dentre os pets, tenha começado há aproximadamente 12.000 anos. Fornecer tantos recursos a outra espécie não é tão freqüente no reino animal. Sendo assim, por que os humanos fazem isso com seus cachorros?
A convivência entre nós e outros seres vivos tem sido estudada por biólogos, que as classificam em, basicamente, três tipos: quando há benefícios para ambas as partes, como no mutualismo; quando somente uma das partes é beneficiada e a outra é indiferente, como no comensalismo; e quando é benéfica para uma das partes e maléfica para a outra, como no parasitismo.
Você pode não estar ciente disso, mas nesse exato momento várias espécies convivem com você numa relação muito íntima. Estima-se que haja por volta de 100 trilhões de microorganismos em todo o nosso corpo: estômago, pele, intestino, axilas, boca, entre outros. A convivência com outros seres é parte da vida humana, sejam as relações harmônicas ou desarmônicas.
Mais uma ligação entre humanos e outras espécies, que nem sempre é vista pelo ângulo das relações entre diferentes seres vivos, remonta há milhares de anos. Trata-se da relação entre os humanos e todos os animais domesticados, alguns visando à produção de leite e consumo de carne, por exemplo, e outros para a companhia, como os animais de estimação.
Criar animais de estimação é uma atividade muito comum entre nós, e costumamos gastar muita afeição e dinheiro com eles. Existem indícios de que a associação dos humanos com os cães, os mais populares dentre os pets, tenha começado há aproximadamente 12.000 anos. Fornecer tantos recursos a outra espécie não é tão freqüente no reino animal. Sendo assim, por que os humanos fazem isso com seus cachorros?
A convivência entre nós e outros seres vivos tem sido estudada por biólogos, que as classificam em, basicamente, três tipos: quando há benefícios para ambas as partes, como no mutualismo; quando somente uma das partes é beneficiada e a outra é indiferente, como no comensalismo; e quando é benéfica para uma das partes e maléfica para a outra, como no parasitismo.
Apesar de convivermos com muitos outros seres vivos, como no caso da relação benéfica com as bactérias que habitam nossos intestinos, os cientistas que estudam o comportamento animal e psicólogos evolucionistas se intrigam com a relação entre humanos e animais de estimação. A questão é como, do ponto de vista evolutivo, desenvolvemos uma relação tão similar a que temos com outros humanos – com fortes laços emocionais – com uma outra espécie.
A análise das relações entre seres vivos em termos de benefícios e malefícios pode nos dar dicas de como evoluiu essa relação tão peculiar. Podemos olhar para as vantagens ou desvantagens que os cães nos proporcionam hoje como uma dica do que teria acontecido ao longo do nosso passado conjunto. Para a nossa relação com os animais de estimação ter sido adaptativa no sentido evolutivo, é preciso que ela tenha trazido vantagens adaptativas aos nossos antepassados e os benefícios, superados os custos. Essa é uma parte da resposta à pergunta por que gostamos de nossos cães, pois se refere a um nível de explicações numa escala temporal distante. Vamos agora lançar nosso olhar para mecanismos evolutivos, que levam milhares de anos para se estabelecer.
Para sabermos se nossa relação com o cão se enquadra mais no mutualismo, comensalismo ou parasitismo precisamos examinar as vantagens e desvantagens para cada um dos envolvidos. Não se esqueça de que essas vantagens e desvantagens são analisadas pelos cientistas de agora, e não foram assim vistas e vividas pelos nossos ancestrais e os dos cães. O que eles sentiam trata-se de um nível mais próximo de análise, que será discutido mais adiante.
As vantagens para os animais são óbvias: nós somos fonte de alimentação, abrigo, proteção e cuidado para eles, e ainda favorecemos sua procriação. As lojas de pet shop têm aproveitado a nossa dedicação a eles – compramos diversas rações, bolachas, brinquedinhos, casinhas, ossinhos, enfim, uma miríade de produtos. Provemos muitos recursos aos nossos animais, alimentando-os, protegendo-os e levando-os ao veterinário quando ficam doentes.
Para os cães as vantagens dessa relação tão próxima com os humanos são imensas; sua população se tornou muito maior do que seria caso não houvesse essa associação com os humanos. Imagine seus parentes lobos nas florestas - cada vez mais degradadas - o quanto têm que se esforçar para conseguir alimento diariamente, fugir de predadores, se abrigar de fenômenos climáticos, se recuperar de doenças e machucados, enfim, sobreviver e se reproduzir não é nada fácil. Nossos cães, em geral, vivem bem mais sossegados, excluindo-se os casos de maus tratos, que em nossa sociedade são passíveis de punições na justiça. Felizmente, a conscientização para o bem estar animal tem crescido.
Para os humanos, há uma vasta literatura falando sobre os benefícios na saúde fisiológica e psicológica que os animais nos proporcionam. Por exemplo, menor incidência de doenças cardiovasculares, redução dos níveis de triglicérides, colesterol e pressão sanguínea, melhor recuperação e maior taxa de sobrevivência a infartos do miocárdio, menor incidência de doenças, diminuição das reações típicas do estresse, maior bem estar psicológico, maior taxa recuperação de doenças psiquiátricas e aumento do cuidado pessoal e da auto-estima. Além disso, cães treinados são amplamente utilizados na assistência de pessoas com deficiências e idosos. Pelo menos hoje em dia, possuir um animal de estimação pode fazer muito bem a seu dono. Contudo, é difícil avaliar se os benefícios na saúde são suficientes para uma contribuição discernível em nosso passado evolutivo e se superaram os custos de manter um animal.
Por isso há uma discussão acerca de como a relação entre os seres humanos e os animais de estimação seria classificada do ponto de vista das relações entre os seres vivos. Alguns autores, como Serpell, acreditam que a relação entre animais de estimação e humanos é de mutualismo. Ele argumenta que os animais têm sido úteis aos humanos para transporte, vestimenta, caça, alimentação e como animais de estimação. Outros argumentam que a relação seria de comensalismo, pois o que proveríamos aos animais não nos seria tão custoso. Porém, John Archer, outro pesquisador, tem uma hipótese curiosa: a relação seria de parasitismo, porém de um tipo especial - o parasitismo social.
Parasitismo social é a situação em que uma espécie manipula o comportamento da outra para obter um benefício, sem fornecer vantagem em troca à altura. Por exemplo, o pássaro cuco bota seus ovos em ninhos de outras espécies de pássaro, e seus filhotes manipulam o comportamento dessas outras espécies, fingindo ser um legítimo filhote, de modo que elas os alimentam e os protegem.
Archer nos convida a olhar para as características faciais e comportamentais dos cães: face rechonchuda, movimentos desajeitados, testa larga, olhos expressivos. Há tempos estudiosos do comportamento humano sabem que tendemos a responder de uma forma parental a certas características faciais e corporais encontradas em bebês humanos. Isso quer dizer que sentimos vontade de cuidar e proteger seres que apresentem essas características, que são típicas dos bebês humanos. Por isso somos facilmente atraídos por personagens de desenho animado como o Piu-piu, o Dumbo e o Mickey Mouse, gostamos de acariciar brinquedos como ursos de pelúcia, e nos atraímos tanto por animais a quem muitas vezes tratamos como bebês – os cachorros, por exemplo.
Há evidências convincentes de que as pessoas usualmente vêem sua relação com seus animais de estimação como similares às que têm com seus filhos. Os donos de animais de estimação os tratam como crianças, por exemplo, brincando com eles, falando com um tom materno - a chamada fala “tatibitate” - continuamente se referem a eles como “meu bebê”, e cuidam e os acariciam como se fossem bebês humanos, mesmo quando o cão já é adulto. Em um estudo de Berryman e pesquisadores, foi encontrado que os animais de estimação são vistos como tão próximos quanto “o próprio filho” entre humanos. Outras evidências de que os animais atuam como substitutos de crianças podem ser encontradas em estudos de outras culturas: eles incluem até mesmo a amamentação de animais filhotes por mulheres lactantes.
Archer diz que em nosso passado evolutivo, os cães como que manipularam as respostas parentais humanas, assim como os cucos. Trata-se de uma voz ativa, porém o que se quer dizer é que quando começamos a criar cachorros, selecionamos os que tinham características de bebês humanos porque elas nos atraem, e ao longo das gerações esses animais foram se reproduzindo e hoje estão largamente representados – é o que se chama de domesticação. Os cães podem ser considerados como manipuladores da espécie humana, no nível de análise evolutiva.
É claro que essa manipulação não implica intenção consciente – nenhum cão pensa que está manipulando seu dono através de expressões faciais e comportamentos que desencadeiam nossa vontade de cuidar e protegê-los. Lembre-se de que estamos no nível distante. Manipulação é um termo evolucionista que aqui significa conseguir benefícios do hospedeiro humano aproveitando-se de dispositivos comportamentais já existentes. Mas os cães não pensaram e não pensam em nos manipular intencionalmente. Eles simplesmente têm características que gostamos, nos dão carinho e gostam verdadeiramente de nós, assim como nós deles. No nível de análise próximo, ou seja, falando-se em um cão e uma pessoa, é isso que acontece. Os termos evolucionistas são usados numa análise maior, ao longo de várias gerações, e não implicam em intenção dos seres.
Assim, agora vamos para uma análise em nível próximo, no âmbito de nossas vidas – a segunda parte da resposta à pergunta do por que gostamos de cachorros. Essa análise já começou antes, quando falamos que os cães parecem bebês. Temos desenvolvido com os cães laços fortes. Há várias pesquisas sobre a importância que um cachorro pode ter na vida de uma pessoa. Além daquelas que vimos sobre como um cão pode ser considerado como um filho, outras peculiaridades da relação tem sido estudadas. E uma relação tão próxima e emocional também interessa aos psicólogos em geral, que cada vez mais têm se deparado com questões acerca da relação entre humanos e cachorros.
Há estudos que apontam que a relação emocional com os cães pode ser considerada como substituta àquelas que se têm com um cônjuge ou com os próprios pais. Foi feita uma pesquisa intercultural sobre animais de estimação e se encontrou que os animais servem a uma variedade de papéis além do de “filho”. O cachorro parece suprir, em muitos casos, uma necessidade emocional. Ele pode ser uma fonte de segurança, e quando as pessoas se sentem ansiosas o cão pode ter um efeito calmante. Assim, a natureza do laço entre humanos e cães contém um forte elemento de segurança, e ele pode substituir a companhia de um outro humano.
O apego emocional que temos com os cães é enorme. Pesquisadores construíram um questionário contendo frases que indicavam níveis de apego com um cachorro de estimação, como, por exemplo, carregar a fotografia do cachorro, deixá-lo dormir em sua cama, freqüentemente falar e interagir com ele, e defini-lo como um membro da família. Os dados indicaram altos níveis de apego entre donos e seus cachorros. Quase a metade definia seu cachorro como um membro da família, 67% carregava uma fotografia dele em sua carteira, 73% deixava eles dormirem em sua cama e 40% comemorava o aniversário do cachorro. As mulheres apresentaram um apego mais forte com seus animais do que os homens.
Um outro estudo também mostrou forte apego por parte de muitos donos, em que muitos entrevistados concordaram com itens tais como ver o animal como uma importante parte de suas vidas e como aquele que promove um senso de conforto.
Relatos sobre as reações à perda de um animal de estimação também mostram como é forte o apego desenvolvido. O pesar de perder um animal de estimação pode ser igual ao custo de perder uma pessoa amada. O processo de luto envolve angústia, pensamentos e sentimentos que acompanham o lento processo de se despedir de uma relação estabelecida. Estudos indicam que há claros paralelos entre as variadas reações que as pessoas apresentam seguidamente à perda de um animal de estimação àquelas sentidas por uma perda de um relacionamento entre humanos.
Uma visão comum, principalmente entre aqueles que não têm animais de estimação, é a de que esse sentimento forte com cães indica que a pessoa tem uma inadequação nas relações interpessoais com outros humanos. O apego com os animais de estimação pode não ser bem visto e julgado como típico de pessoas socialmente desajustadas, imaturas e fracas, como se fosse errado destinar afeição a outra espécie. Serpell acredita que essa visão pode vir da tradição judaico-cristã da Europa ocidental de considerar que os animais foram criados para servir ao homem, que deve então dominar essas consideradas criaturas inferiores e nunca se equiparar a elas. A Biologia atual não considera os outros animais inferiores ao homem, que também é um animal.
Algumas pesquisas foram feitas e encontraram mais características de personalidade consideradas positivas entre aqueles que têm animais de estimação do que os que não têm. Também foi encontrado que as pessoas que têm relações mais fortes e seguras com outros humanos são as que têm apego mais forte com seus animais, contrariando a idéia de que seriam desajustadas socialmente.
Uma outra visão que se tem é a de que essa relação com animais de estimação é específica ao mundo ocidental moderno. Contudo, evidências arqueológicas, geográficas, históricas e antropológicas contrariam essa idéia. Evidências da domesticação dos cães remontam milhares de anos atrás – incluindo um humano enterrado junto a um cão. Várias evidências fósseis indicam que a domesticação dos cães começou quando os pegamos como animais de estimação, e não para outros propósitos, como a caça. Além disso, possuir animais de estimação foi comum na Grécia e Roma antigas, e em vários locais da Europa, China, Japão e África, e até mesmo em sociedades tribais, como na América do norte e do sul e na Austrália. Assim, possuir um animal por afeição e não para fins alimentícios ou de trabalho - na sociedade ocidental denominado como animal de estimação - tem sido comum nas sociedades humanas em geral.
É claro que na sociedade ocidental atual há condições para que possuir animais de estimação seja muito comum. Os arranjos sociais favorecem os laços com os pets: a demografia está caindo, as famílias são menores e estão sendo modificadas, com mais pessoas morando sozinhas. Apesar da falta de evidência para que as pessoas que se ligam aos seus animais serem desajustadas socialmente, as pessoas que moram sozinhas ou não têm filhos parecem ser mais apegadas aos seus animais, o que não significa que tenham dificuldades no contato com outros humanos.
Além disso, a sociedade ocidental parece enfatizar a individualidade, a racionalidade e o controle, o livre-arbítrio e o materialismo, diferentemente de sociedades tradicionais que enfatizam valores comunitários, a expressão emocional e a espiritualidade. Essas diferenças afetam as crenças e atitudes das pessoas. Assim, a atividade de possuir animais de estimação pode ser muito acentuada no ocidente talvez pelo preenchimento de necessidades emocionais que os animais proporcionam, e que em outras sociedades são supridas de outras maneiras. Contudo, estudos transculturais indicam que possuir animais de estimação está mais relacionado com tradições e crenças a respeito dos animais – como a idéia de que são inferiores, pouco dignos do cuidado humano – do que com a extensão da família ou com a dimensão coletivista ou individualista da sociedade. Porém, em uma tradição cultural particular, a existência de menos contatos sociais pode acentuar o apego aos animais.
Alguns autores têm sugerido que os cães podem agir como catalisadores sociais: esses animais aumentariam a freqüência de interações sociais e elevariam ou reforçariam a rede de relações entre pessoas. Em pesquisas feitas, o animal agiu como um facilitador de contato inicial, “quebrando o gelo”, removendo inibições em conversas casuais, e provendo um tópico neutro e seguro de conversação. Wood e colaboradores confirmaram esta linha de pensamento em entrevistas realizadas na Austrália. Eles encontraram relação positiva entre proprietários de animais de estimação e formas de contato social, interação e percepção de amizade entre vizinhos. Os proprietários tiveram maior índice de engajamento social, referindo-se a aspectos da vida social (como normas, confiança mútua e redes sociais) que fazem com que pessoas ajam em conjunto de forma mais eficiente e para atingir um objetivo comum.
No estudo de passeio real com cães dos pesquisadores ingleses Nicholas e Collis, experimentadores passearam com e sem um cão. Mais desconhecidos se aproximaram deles quando estavam com o cão do que quando estavam sozinhos. Outro pesquisador demonstrou que donos de cães conversam mais com outras pessoas quando passeiam com seus cães no parque do que quando vão sozinhos. Como vimos anteriormente, há vários estudos sobre os benefícios na saúde que os cães podem proporcionar, e normalmente isso é atribuído ao conforto emocional que promovem. Porém, Nicholas e Collis argumentam que essa melhora na saúde pode ser também efeito do aumento das interações sociais que promove. A sensação de integração social que possuir um animal de estimação pode ter contribuiria também para elevar o bem-estar de seus donos.
Enfim, a velha asserção “o cão é o melhor amigo do homem”, em termos evolutivos pode ser invertida para “o homem é o melhor amigo do cão”. Porém, no âmbito de nossas vidas os cães têm assumido vários papéis, mas que podem ser resumidos como o de amigo. Para unir os sentidos evolutivos e o da nossa vida ficaria melhor então: cães e homens, uma velha relação de amizade.
Adaptado do original "Por que gostamos de cachorros?" publicado na revista Psique Ciência & Vida, Editora Escala, número 32.
A análise das relações entre seres vivos em termos de benefícios e malefícios pode nos dar dicas de como evoluiu essa relação tão peculiar. Podemos olhar para as vantagens ou desvantagens que os cães nos proporcionam hoje como uma dica do que teria acontecido ao longo do nosso passado conjunto. Para a nossa relação com os animais de estimação ter sido adaptativa no sentido evolutivo, é preciso que ela tenha trazido vantagens adaptativas aos nossos antepassados e os benefícios, superados os custos. Essa é uma parte da resposta à pergunta por que gostamos de nossos cães, pois se refere a um nível de explicações numa escala temporal distante. Vamos agora lançar nosso olhar para mecanismos evolutivos, que levam milhares de anos para se estabelecer.
Para sabermos se nossa relação com o cão se enquadra mais no mutualismo, comensalismo ou parasitismo precisamos examinar as vantagens e desvantagens para cada um dos envolvidos. Não se esqueça de que essas vantagens e desvantagens são analisadas pelos cientistas de agora, e não foram assim vistas e vividas pelos nossos ancestrais e os dos cães. O que eles sentiam trata-se de um nível mais próximo de análise, que será discutido mais adiante.
As vantagens para os animais são óbvias: nós somos fonte de alimentação, abrigo, proteção e cuidado para eles, e ainda favorecemos sua procriação. As lojas de pet shop têm aproveitado a nossa dedicação a eles – compramos diversas rações, bolachas, brinquedinhos, casinhas, ossinhos, enfim, uma miríade de produtos. Provemos muitos recursos aos nossos animais, alimentando-os, protegendo-os e levando-os ao veterinário quando ficam doentes.
Para os cães as vantagens dessa relação tão próxima com os humanos são imensas; sua população se tornou muito maior do que seria caso não houvesse essa associação com os humanos. Imagine seus parentes lobos nas florestas - cada vez mais degradadas - o quanto têm que se esforçar para conseguir alimento diariamente, fugir de predadores, se abrigar de fenômenos climáticos, se recuperar de doenças e machucados, enfim, sobreviver e se reproduzir não é nada fácil. Nossos cães, em geral, vivem bem mais sossegados, excluindo-se os casos de maus tratos, que em nossa sociedade são passíveis de punições na justiça. Felizmente, a conscientização para o bem estar animal tem crescido.
Para os humanos, há uma vasta literatura falando sobre os benefícios na saúde fisiológica e psicológica que os animais nos proporcionam. Por exemplo, menor incidência de doenças cardiovasculares, redução dos níveis de triglicérides, colesterol e pressão sanguínea, melhor recuperação e maior taxa de sobrevivência a infartos do miocárdio, menor incidência de doenças, diminuição das reações típicas do estresse, maior bem estar psicológico, maior taxa recuperação de doenças psiquiátricas e aumento do cuidado pessoal e da auto-estima. Além disso, cães treinados são amplamente utilizados na assistência de pessoas com deficiências e idosos. Pelo menos hoje em dia, possuir um animal de estimação pode fazer muito bem a seu dono. Contudo, é difícil avaliar se os benefícios na saúde são suficientes para uma contribuição discernível em nosso passado evolutivo e se superaram os custos de manter um animal.
Por isso há uma discussão acerca de como a relação entre os seres humanos e os animais de estimação seria classificada do ponto de vista das relações entre os seres vivos. Alguns autores, como Serpell, acreditam que a relação entre animais de estimação e humanos é de mutualismo. Ele argumenta que os animais têm sido úteis aos humanos para transporte, vestimenta, caça, alimentação e como animais de estimação. Outros argumentam que a relação seria de comensalismo, pois o que proveríamos aos animais não nos seria tão custoso. Porém, John Archer, outro pesquisador, tem uma hipótese curiosa: a relação seria de parasitismo, porém de um tipo especial - o parasitismo social.
Parasitismo social é a situação em que uma espécie manipula o comportamento da outra para obter um benefício, sem fornecer vantagem em troca à altura. Por exemplo, o pássaro cuco bota seus ovos em ninhos de outras espécies de pássaro, e seus filhotes manipulam o comportamento dessas outras espécies, fingindo ser um legítimo filhote, de modo que elas os alimentam e os protegem.
Archer nos convida a olhar para as características faciais e comportamentais dos cães: face rechonchuda, movimentos desajeitados, testa larga, olhos expressivos. Há tempos estudiosos do comportamento humano sabem que tendemos a responder de uma forma parental a certas características faciais e corporais encontradas em bebês humanos. Isso quer dizer que sentimos vontade de cuidar e proteger seres que apresentem essas características, que são típicas dos bebês humanos. Por isso somos facilmente atraídos por personagens de desenho animado como o Piu-piu, o Dumbo e o Mickey Mouse, gostamos de acariciar brinquedos como ursos de pelúcia, e nos atraímos tanto por animais a quem muitas vezes tratamos como bebês – os cachorros, por exemplo.
Há evidências convincentes de que as pessoas usualmente vêem sua relação com seus animais de estimação como similares às que têm com seus filhos. Os donos de animais de estimação os tratam como crianças, por exemplo, brincando com eles, falando com um tom materno - a chamada fala “tatibitate” - continuamente se referem a eles como “meu bebê”, e cuidam e os acariciam como se fossem bebês humanos, mesmo quando o cão já é adulto. Em um estudo de Berryman e pesquisadores, foi encontrado que os animais de estimação são vistos como tão próximos quanto “o próprio filho” entre humanos. Outras evidências de que os animais atuam como substitutos de crianças podem ser encontradas em estudos de outras culturas: eles incluem até mesmo a amamentação de animais filhotes por mulheres lactantes.
Archer diz que em nosso passado evolutivo, os cães como que manipularam as respostas parentais humanas, assim como os cucos. Trata-se de uma voz ativa, porém o que se quer dizer é que quando começamos a criar cachorros, selecionamos os que tinham características de bebês humanos porque elas nos atraem, e ao longo das gerações esses animais foram se reproduzindo e hoje estão largamente representados – é o que se chama de domesticação. Os cães podem ser considerados como manipuladores da espécie humana, no nível de análise evolutiva.
É claro que essa manipulação não implica intenção consciente – nenhum cão pensa que está manipulando seu dono através de expressões faciais e comportamentos que desencadeiam nossa vontade de cuidar e protegê-los. Lembre-se de que estamos no nível distante. Manipulação é um termo evolucionista que aqui significa conseguir benefícios do hospedeiro humano aproveitando-se de dispositivos comportamentais já existentes. Mas os cães não pensaram e não pensam em nos manipular intencionalmente. Eles simplesmente têm características que gostamos, nos dão carinho e gostam verdadeiramente de nós, assim como nós deles. No nível de análise próximo, ou seja, falando-se em um cão e uma pessoa, é isso que acontece. Os termos evolucionistas são usados numa análise maior, ao longo de várias gerações, e não implicam em intenção dos seres.
Assim, agora vamos para uma análise em nível próximo, no âmbito de nossas vidas – a segunda parte da resposta à pergunta do por que gostamos de cachorros. Essa análise já começou antes, quando falamos que os cães parecem bebês. Temos desenvolvido com os cães laços fortes. Há várias pesquisas sobre a importância que um cachorro pode ter na vida de uma pessoa. Além daquelas que vimos sobre como um cão pode ser considerado como um filho, outras peculiaridades da relação tem sido estudadas. E uma relação tão próxima e emocional também interessa aos psicólogos em geral, que cada vez mais têm se deparado com questões acerca da relação entre humanos e cachorros.
Há estudos que apontam que a relação emocional com os cães pode ser considerada como substituta àquelas que se têm com um cônjuge ou com os próprios pais. Foi feita uma pesquisa intercultural sobre animais de estimação e se encontrou que os animais servem a uma variedade de papéis além do de “filho”. O cachorro parece suprir, em muitos casos, uma necessidade emocional. Ele pode ser uma fonte de segurança, e quando as pessoas se sentem ansiosas o cão pode ter um efeito calmante. Assim, a natureza do laço entre humanos e cães contém um forte elemento de segurança, e ele pode substituir a companhia de um outro humano.
O apego emocional que temos com os cães é enorme. Pesquisadores construíram um questionário contendo frases que indicavam níveis de apego com um cachorro de estimação, como, por exemplo, carregar a fotografia do cachorro, deixá-lo dormir em sua cama, freqüentemente falar e interagir com ele, e defini-lo como um membro da família. Os dados indicaram altos níveis de apego entre donos e seus cachorros. Quase a metade definia seu cachorro como um membro da família, 67% carregava uma fotografia dele em sua carteira, 73% deixava eles dormirem em sua cama e 40% comemorava o aniversário do cachorro. As mulheres apresentaram um apego mais forte com seus animais do que os homens.
Um outro estudo também mostrou forte apego por parte de muitos donos, em que muitos entrevistados concordaram com itens tais como ver o animal como uma importante parte de suas vidas e como aquele que promove um senso de conforto.
Relatos sobre as reações à perda de um animal de estimação também mostram como é forte o apego desenvolvido. O pesar de perder um animal de estimação pode ser igual ao custo de perder uma pessoa amada. O processo de luto envolve angústia, pensamentos e sentimentos que acompanham o lento processo de se despedir de uma relação estabelecida. Estudos indicam que há claros paralelos entre as variadas reações que as pessoas apresentam seguidamente à perda de um animal de estimação àquelas sentidas por uma perda de um relacionamento entre humanos.
Uma visão comum, principalmente entre aqueles que não têm animais de estimação, é a de que esse sentimento forte com cães indica que a pessoa tem uma inadequação nas relações interpessoais com outros humanos. O apego com os animais de estimação pode não ser bem visto e julgado como típico de pessoas socialmente desajustadas, imaturas e fracas, como se fosse errado destinar afeição a outra espécie. Serpell acredita que essa visão pode vir da tradição judaico-cristã da Europa ocidental de considerar que os animais foram criados para servir ao homem, que deve então dominar essas consideradas criaturas inferiores e nunca se equiparar a elas. A Biologia atual não considera os outros animais inferiores ao homem, que também é um animal.
Algumas pesquisas foram feitas e encontraram mais características de personalidade consideradas positivas entre aqueles que têm animais de estimação do que os que não têm. Também foi encontrado que as pessoas que têm relações mais fortes e seguras com outros humanos são as que têm apego mais forte com seus animais, contrariando a idéia de que seriam desajustadas socialmente.
Uma outra visão que se tem é a de que essa relação com animais de estimação é específica ao mundo ocidental moderno. Contudo, evidências arqueológicas, geográficas, históricas e antropológicas contrariam essa idéia. Evidências da domesticação dos cães remontam milhares de anos atrás – incluindo um humano enterrado junto a um cão. Várias evidências fósseis indicam que a domesticação dos cães começou quando os pegamos como animais de estimação, e não para outros propósitos, como a caça. Além disso, possuir animais de estimação foi comum na Grécia e Roma antigas, e em vários locais da Europa, China, Japão e África, e até mesmo em sociedades tribais, como na América do norte e do sul e na Austrália. Assim, possuir um animal por afeição e não para fins alimentícios ou de trabalho - na sociedade ocidental denominado como animal de estimação - tem sido comum nas sociedades humanas em geral.
É claro que na sociedade ocidental atual há condições para que possuir animais de estimação seja muito comum. Os arranjos sociais favorecem os laços com os pets: a demografia está caindo, as famílias são menores e estão sendo modificadas, com mais pessoas morando sozinhas. Apesar da falta de evidência para que as pessoas que se ligam aos seus animais serem desajustadas socialmente, as pessoas que moram sozinhas ou não têm filhos parecem ser mais apegadas aos seus animais, o que não significa que tenham dificuldades no contato com outros humanos.
Além disso, a sociedade ocidental parece enfatizar a individualidade, a racionalidade e o controle, o livre-arbítrio e o materialismo, diferentemente de sociedades tradicionais que enfatizam valores comunitários, a expressão emocional e a espiritualidade. Essas diferenças afetam as crenças e atitudes das pessoas. Assim, a atividade de possuir animais de estimação pode ser muito acentuada no ocidente talvez pelo preenchimento de necessidades emocionais que os animais proporcionam, e que em outras sociedades são supridas de outras maneiras. Contudo, estudos transculturais indicam que possuir animais de estimação está mais relacionado com tradições e crenças a respeito dos animais – como a idéia de que são inferiores, pouco dignos do cuidado humano – do que com a extensão da família ou com a dimensão coletivista ou individualista da sociedade. Porém, em uma tradição cultural particular, a existência de menos contatos sociais pode acentuar o apego aos animais.
Alguns autores têm sugerido que os cães podem agir como catalisadores sociais: esses animais aumentariam a freqüência de interações sociais e elevariam ou reforçariam a rede de relações entre pessoas. Em pesquisas feitas, o animal agiu como um facilitador de contato inicial, “quebrando o gelo”, removendo inibições em conversas casuais, e provendo um tópico neutro e seguro de conversação. Wood e colaboradores confirmaram esta linha de pensamento em entrevistas realizadas na Austrália. Eles encontraram relação positiva entre proprietários de animais de estimação e formas de contato social, interação e percepção de amizade entre vizinhos. Os proprietários tiveram maior índice de engajamento social, referindo-se a aspectos da vida social (como normas, confiança mútua e redes sociais) que fazem com que pessoas ajam em conjunto de forma mais eficiente e para atingir um objetivo comum.
No estudo de passeio real com cães dos pesquisadores ingleses Nicholas e Collis, experimentadores passearam com e sem um cão. Mais desconhecidos se aproximaram deles quando estavam com o cão do que quando estavam sozinhos. Outro pesquisador demonstrou que donos de cães conversam mais com outras pessoas quando passeiam com seus cães no parque do que quando vão sozinhos. Como vimos anteriormente, há vários estudos sobre os benefícios na saúde que os cães podem proporcionar, e normalmente isso é atribuído ao conforto emocional que promovem. Porém, Nicholas e Collis argumentam que essa melhora na saúde pode ser também efeito do aumento das interações sociais que promove. A sensação de integração social que possuir um animal de estimação pode ter contribuiria também para elevar o bem-estar de seus donos.
Enfim, a velha asserção “o cão é o melhor amigo do homem”, em termos evolutivos pode ser invertida para “o homem é o melhor amigo do cão”. Porém, no âmbito de nossas vidas os cães têm assumido vários papéis, mas que podem ser resumidos como o de amigo. Para unir os sentidos evolutivos e o da nossa vida ficaria melhor então: cães e homens, uma velha relação de amizade.
Adaptado do original "Por que gostamos de cachorros?" publicado na revista Psique Ciência & Vida, Editora Escala, número 32.
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Referências
ARCHER, J. Why do people love their pets? Evolution and Human Behavior, v. 18, p. 237-259, 1997.
McNicholas, J.; Collis, G. Dogs as catalysts for social interactions: robustness of the effecf. British Journal of Psychology, v. 91, p. 61-70, 2000.
SERPELL, J. A. Beneficial effects of a pet ownership on some aspects of human health and behaviour. Journal Animal Behaviour Science 47: 49-60, 1996.
SERPELL, J. A. Beneficial effects of a pet ownership on some aspects of human health and behaviour. Journal Animal Behaviour Science 47: 49-60, 1996.
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Saudade lembrada, saudade sentida, saudade hoje e para o resto da vida...saudade eterna!
Nosso pedacinho do céu...