MORTE DE UM ANIMAL
A dor maior da perda
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A morte de um animal pode ser tão ou mais dolorosa quanto a de uma pessoa mas, por vezes, o pesar é silenciado perante as críticas e a incompreensão dos outros relativamente a um assunto tabu.
"Quando os animais fazem parte da família, da intimidade dos donos, que realmente gostam e tudo fazem por eles, os donos sofrem em tudo como se de um ente querido se tratasse. A reação à morte é muito idêntica ao que seria perante um membro querido da família, só não comparável à de um pai, uma mãe ou um filho", sustenta o médico veterinário Luís Montenegro.
Para Henrique Armés, também veterinário, "quanto mais próximo esse animal" for de uma pessoa, "maior será a dor" quando ele morrer.
Por isso, não é de estranhar que a perda de um cão ou de um gato possa ser mais penosa do que a de um familiar que raramente se vê ou quem se convive ou de uma pessoa à qual não se está sentimentalmente tão ligado.
"Não vislumbro grande diferença entre a pessoa e o animal, é uma falsa questão", defende.
A verdadeira questão, ressalva, está quando os donos "exteriorizam pouco a dor" porque ela "é reprovada socialmente, não é bem vista", por se tratar, aí sim, relativa a um animal e não a uma pessoa.
"Chorar por um cão não é normal, amar um cão não é normal", ouvia dos outros Manuela Francisco, que foi "tão criticada por vizinhos e familiares" por chorar a morte da "Darinha", sonhar com ela e "vê-la" ainda nos sítios habituais da casa.
"Esse sentimento, por um animal, pode parecer aos olhos de muitas pessoas um sinal de fraqueza, de pieguice ou mesmo de tolice. Mas só assim pensa quem não conhece verdadeiramente quanto um animal pode representar na vida das pessoas", assinala a presidente da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais, Maria do Céu Sampaio, frisando que a morte "é um assunto ainda tabu".
Os donos, para os quais o cão, o gato ou outro bicho de estimação era a sua única companhia, uma terapia na hora da doença, um companheiro, um amigo, um filho ou um irmão, vivem intensamente o luto, alternado, como no luto humano, entre o choque, o choro, a tristeza, a negação, a raiva, a culpa e a aceitação.
Nestes casos, o sentimento de perda "em relação aos animais é humanizado", advoga o médico veterinário Luís Montenegro.
"Há os extremos: donos para os quais a morte do animal é um alívio, menos uma despesa, e os que abdicam de muita coisa e, se não são bem direcionados, entram em depressão", sublinha Rui Neves, igualmente veterinário, dando como exemplos um casal que empenhou as alianças para acabar com o sofrimento do seu bicho e uma mulher que "descompensou completamente, o seu sistema nervoso foi-se abaixo" e ficou diabética.
"Há pessoas que precisam de ajuda psicológica", frisa.
Nos Estados Unidos existem grupos de entreajuda, especialistas que lidam com a dor da perda dos animais de estimação, linhas telefónicas de aconselhamento geridas por associações de estudantes de Medicina Veterinária.
"As pessoas também não procuram ajuda, acham que não têm razão para isso, têm receio de que os outros as julguem, fazem o luto por si próprias, não é necessária a intervenção de um psicólogo", alega Telmo Baptista, o único psicólogo que a Agência Lusa encontrou disponível para falar sobre a matéria, talvez porque ele próprio vivenciou a morte do seu cão.
Por "vergonha" de serem apontados como "maluquinhos", donos há que choram entre quatro paredes ou desabafam apenas com quem sabe ou sofre como eles, em blogues da bicharada ou com os veterinários, que se socorrem da "educação, do bom-senso e da prática" clínica para lidar com a morte, tema esquecido na sua formação, segundo o médico veterinário Nuno Revez.
António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, não teve pejo em exteriorizar os seus sentimentos quando lhe morreram dois cães e uma gata, em diferentes momentos da vida.
"É um acto humano natural, torna-nos mais transparentes", justifica. E lembra: "Os animais são companheiros sempre disponíveis, nunca estão cansados, nunca estão fartos de nós, são importantes para mim, não substituem as pessoas mas isso não quer dizer que a sua perda seja menor".
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Entre a razão e a emoção
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Para cumprirem bem a sua missão, cuidar dos animais, veterinários e voluntários de associações protectoras obrigam-se a reagir com frieza à morte mas também cedem à emoção, choram discretamente, acolhem a culpa e a dor da perda.
Às vezes chega a ser demais. Pedro Francisco, médico veterinário há 13 anos, fecha-se no seu gabinete até à próxima consulta quando lhe morre nas mãos um "animal simpático" ou que "acompanha há muito tempo". Precisa de "um espaço" para estar consigo próprio, longe de olhares.
"Aceito muito bem a morte, faz parte do meu trabalho, mas fica sempre alguma tristeza", justifica.
Longe vai a altura, quando era ainda um novato na profissão, em que teve "um ataque de choro monumental" quando se preparava para eutanasiar um dos seus pacientes, uma prática autorizada nos animais com diagnósticos irreversíveis.
"Não consegui, teve de ser um colega a fazê-lo", conta Pedro Francisco, que agora, aos 43 anos, realiza "tranquilamente" a eutanásia, "espiado" pelos retratos dos "seus" animais falecidos que estão colados nas paredes da sua clínica, em Oeiras.
"Os veterinários tendem a habituar-se ao fenómeno da morte/eutanásia parecendo reagir, muitas vezes, com alguma indiferença/frieza. Claro que há casos que nos marcam mais, sobretudo os animais com doenças crónicas que nos habituámos a ver várias vezes no hospital e nos quais investimos muito", admite Hugo Gregório, clínico no Hospital Veterinário do Porto.
Durante cerca de um ano, Rui Máximo, médico do Hospital Veterinário do Restelo, em Lisboa, fez sessões regulares de quimioterapia a um cão com um linfoma. No final, teve de eutanasiá-lo.
"Fiquei triste e um pouco emocionado, embora soubesse que a eutanásia", morte provocada sem dor, "era a decisão mais acertada pelo sofrimento em que o animal se encontrava".
"Acabei por sofrer como se fosse um animal meu", confessa, reconhecendo a dificuldade "em gerir a relação razão versus emoção" em casos como este.
Isto, apesar das "defesas que, com o tempo, se vão criando, alguma frieza que é necessário haver, algum distanciamento que acabamos naturalmente por criar para não nos envolvermos emocionalmente", sustenta.
Como se não bastassem tais dilemas, que os colocam em constante "stress", os médicos veterinários tornam-se confidentes dos donos na dor e, não raras vezes, são culpabilizados pela morte do animal de estimação.
"Acabamos por ajudá-los no luto. Sabem que podem desabafar, sabem que não vou criticar", comenta Rui Neves, veterinário há 15 anos, realçando que o clínico pode, ao invés, ser injustamente criticado porque "não detectou a doença" do bicho ou este "não foi medicado mais cedo".
Mas e os voluntários das associações protectoras dos animais, como reagem à morte?
"Muitas vezes, sentimo-nos culpados. Por que é que não reparámos que não estava bem naquele dia? Por que é não brincámos mais com ele ou ela? Por que é que não o abraçámos durante mais tempo? Por que é que não lhe demos mais biscoitos?", responde, na interrogativa, Isabel Ramos, voluntária na União Zoófila.
Chora-se, e "muito", em casa, fala-se com os colegas, escreve-se sobre os animais aos quais "não foi feita justiça".
"Mas não podemos sucumbir à tristeza porque esta é paralisante e impede-nos de continuar a fazer o nosso trabalho", cuidar de cães e gatos abandonados, maltratados, feridos e assustados, salienta Isabel Ramos.
É que, denuncia, "alguns destes animais nunca tiveram nada a que se pudesse chamar casa: viviam acorrentados, dentro de uma oficina, foram usados para lutas ou como parideiras, eram vítimas de caçadores, de quem os espancava e os deixava à míngua de comida".
"Os voluntários sofrem a perda dos animais como se fossem seus. A pessoa chora mas tem de tratar dos outros, tem de andar, não pode ficar sentadinha o dia todo a chorar". O veredicto é de Maria Helena Mascarenhas, responsável da Associação dos Amigos dos Animais de Almada, que tem a seu cargo 250 cães e bichanos que o destino atraiçoou.
Fonte:http://www.auniao.com/noticias
Jornal de Portugal